segunda-feira, julho 11, 2011

Final de semana

Eu estava feliz com a minha sexta-feira em casa. Eu pensava na rua, nas pessoas lá fora correndo para fazer não sei o quê. Nada parecia interessante ou valer a pena. Aqui estava bem melhor. Eu tinha mil coisas pra fazer, muitos pensamentos com os quais me ocupar, coisas para escrever, ler. Estava adorando negligenciar a tudo isso.

11:20. O telefone tocou. Quem será que é? Quem pra me ligar às 11:20? Se a essa hora a pessoa não está fazendo nada de bom, é porque não tem mesmo nada pra fazer. Então por que vai me convidar pra fazer a mesma coisa tediosa que ela? Era a Dani.

- Vou sair com dois amigos, aqueles que eu te falei. Vamos lá naquele bar, meu amigo adora. Vem comigo, pra me fazer companhia. Você acorda cedo?

- Acordo, sim, Dani. Tenho ensaio.

- Ah, mas vem comigo. Eu vou com eles dois.

- Então você quer que eu vá lá pra completar o número? 2 X 2, é isso?

- Ai, seu bobo. Eu também quero te ver. Vamos, minha amiga está de carro, eu te levo em casa depois.

- Tá certo, não sei te dizer não. Mas eu vou demorar, você sabe que eu moro longe de lá.

- Não, demora não. Vem rápido. Em meia hora eu estou lá.

Às 11:40 eu saí de casa. No caminho, passei por um bar que ficava bem do lado do que tínhamos combinado. A música era horrível. Um cara servia vinho pra uma mulher, segurava a garrafa com um guardanapo de pano. Ele estava se achando galante e entendedor de vinhos. Pensei em entrar e ver se tinha alguém conhecido, mas isso me fez passar batido. Cheguei onde a encontraria e o relógio já estava alucinado pra marcar uma da manhã. Tava cheio pra cacete, como eu sabia que estaria, mas eu estava esperando pra ver. O bar era de rock, mas tinha umas mulheres com penas na cabeça. Que merda era aquela?

Tinha um camarada na porta dando os bilhetes da entrada, que eram pagas na saída. Resolvi telefonar pra ela. Não atendeu. "Mas ela disse que ia chegar rápido, deve estar lá." Entrei. Oito reais, odeio isso. Primeiro andar, cheio, lotado. Tinha uma banda tocando bem alto. Qualquer expectativa de uma boa conversa naquela noite já era, mas pelo menos eles eram bons. O baixista parecia o melhor, mas tinha jeito de que tocava aquilo só pela grana. Pelos meus oito reais. Tudo bem, é justo.

Passei o olho pelo lugar, nada dela. Um muleque estava encostado na escada com cara de enjoado. Ficou me olhando, eu achei que ia vomitar em mim. Desviei dele e subi. Segundo andar. Olhei de novo, ela não estava. É claro.


***


Telefonei. Não atendeu. Mas logo depois ela ligou.

- Oi, oi!

- Cadê você?

- Estou num barzinho do lado.

- Ah, sim. Eu já cheguei, estou aqui. Tá cheio demais.

- Em quinze minutos eu chego, tá?

As mesas estavam todas ocupadas. Fiquei esperando em pé. Comecei a brincar de colocar palavrões em ordem alfabética. Se eu me lembrasse de algum que deveria estar em uma posição anterior, tinha que começar tudo de novo. Quando percebi que estava esperando demais, fui dar uma olhada lá fora. Ela estava lá.

- Oi! Estamos decidindo se vamos entrar, você disse que tá bem cheio, né?

- É. Mas já paguei a entrada.

- Entendi. Puxa, você que sabe, o que prefere?

Fui honesto, eu preferia ir embora. Fui até o balcão para pagar. Entreguei a cartela e os oito reais. A mulher ficou me olhando como se estivesse encarando o enigma da Esfinge. "São dezoito reais", ela disse e apontou pro papel. Tinha um número um embolado ali, por cima do cifrão, que eu não tinha visto. Se eu ainda estivesse com meu jogo de ordem alfabética, teria que recomeçar. Saquei mais dez reais. Bem na hora, ela chegou.

- Ei, você já pagou? Decidimos entrar, você já tinha pagado a entrada, não seria justo.

Ela era mesmo um anjo. Se não fosse, não teria me chamado pra sair, é claro.


***


A Dani foi ao banheiro e a amiga veio falar comigo.

- Quais são as suas intenções com a minha amiga?, perguntou sem nenhum sucesso em parecer ameaçadora.

- As piores possíveis - eu disse.

- Ah, adoro gente sincera! - e ficou lá gargalhando.


***


O cara era gente fina. Ficava na dele, parecia bem humorado. Usava um jaquetão e tinha jeito de motoqueiro. A mulher que estava com ele já tinha bebido mais do que aguentava e continuava pedindo mais. Eu não precisava ser vidente para sacar que não ia acabar bem. Uma hora ela disse que queria fumar. Levantou e foi lá fora, toda feliz. Quando voltou, começou a contar bem alto (não teria como ser baixo, a banda tocava alto MESMO) que tinha encontrado uma amiga que não via há anos e que estava afim de dançar. Ela e a Dani foram lá dançar e eu continuei na minha, eu e o motoqueiro. Ele era mesmo bacana, tinha sacado que não dava pra conversar sem ter que berrar, então me ajudava brindando sempre que chegava outra cerveja. Sabe como é, dizem que é um problema beber sem brindar.

A Dani se cansou e resolveu se sentar. Uma pena, ela estava dançando muito bem. Era bonito de assistir, me fez ter ficado feliz por ter saído de casa. Eu tenho inveja de quem sabe dançar, as pessoas parecem se divertir muito. A amiga dela resolveu pegar alguma coisa na bolsa, um pó branco que lançou nariz adentro. Deixou o resto com o cara, que sorriu constrangido e o guardou. Depois ela voltou a dançar, estava mesmo bem animada.


***


Lá pelas tantas ela pediu uma tequila. Colocou a bolsa na mesa e começou a vasculhar à procura da cartela para marcar o pedido. Mexeu, procurou, revirou e, sem perceber, a bolsa esbarrou no copinho. A tequila escorreu pela mesa e ela continuaria lá, procurando dentro da bolsa, se o garçom não tivesse avisado. Quando ela gritou "EU NÃO VOU PAGAR!" eu pedi licença, precisava ir ao banheiro.


***


Hora de ir. Era a vez da Dani revirar a bolsa, estava atrás da carteira. Sugeri que ela colocasse tudo em cima da mesa, esvaziasse. Olhamos tudo e nada. Sumiu.

- Deve ter caído no carro dela. Puxa, paga a conta pra mim hoje? - Ela parecia mesmo constrangida.

- Claro. – e eu dei um sorriso. Eu sou bom nisso. Seria hora de recomeçar a brincadeira, mas não me lembrava de nenhum palavrão com A.


***


Estávamos todos bêbados, mas as duas não se preocupavam em (ou conseguiam) esconder, enquanto eu e o motoqueiro mantínhamos a pose. Eu tinha dito à Dani que ela não voltaria no carro da amiga e àquela altura ela não só concordava comigo, como tentava convencê-la de que dirigir não era uma opção. Quando já estava aceitando a idéia, voltou para mim.

- Mas eu não te conheço, não posso deixar você ir embora daqui com a minha amiga. O que você vai fazer com ela?

- Coisas terríveis, você não pode imaginar. – O meu sarcarmo era óbvio, mas eu me divertia mesmo assim.

- Ah, ele é tão sincero, não é? – ela ficou rindo, quase se esqueceu de que tentava parecer imponente. – Mas eu preciso dos seus dados. Preciso saber quem é você pra ir embora assim com a Dani.

- Tá. Meu RG. – ela pegou papel e caneta. - Um dois três quatro cinco seis.

Ela não curtiu minha resposta, só tinha parado de escrever no quatro. Ela não conseguia mostrar autoridade, mas estava ficando irritada, quase nervosa. Não sei, acho que o pozinho branco devia ter perdido o efeito, já. O motoqueiro sacou que estava ficando chato. Não tinha jeito, ela iria com ele, o carro dela ficaria na rua e eu levaria a Dani até o táxi.

Lá fomos nós até o ponto de táxi. Ela tropeçou três vezes, eu estava descobrindo minha vocação para muleta. Abri a porta do carro, nos despedimos com um beijo, e disse o endereço dela para o motorista com a voz mais imperiosa que consegui. Não queria que ele ficasse dando voltas por aí com ela às cinco da manhã.

Voltei pra casa de ônibus, é claro.


***


Fui dormir às seis e meia. Tinha ensaio meio dia. Acordei às dez e meia, saí às onze. Fui o primeiro a chegar. Telefonei pro guitarrista.

- Cara, que horas é o ensaio mesmo? Meio dia e meia, né?

- Isso aí. Já vou sair de casa.


***


Eu tinha comprado ingresso para um festival de bandas. Custou quinze reais, um ótimo preço, mas era em Campo Grande. Eu moro longe de qualquer lugar, mas especialmente de Campo Grande. Começava às quatro da tarde e acabava às seis da manhã. Eu devia ir direto do ensaio, ou então, mais prudentemente, voltaria pra casa, almoçava e saía direto. Mas eu resolvi ir ver uma amiga cantar. Ela é linda e tem um sorriso de alegrar o espírito. E eu sabia que ela ia gostar se eu aparecesse lá assim, de repente. No caminho, resolvi mandar uma mensagem, “Ei, saudade de você! Será que nos vemos hoje?”. Coisa de garoto, mas foi legal aparecer por lá e ver o espanto dela. Ponto alto do dia.

Eu estava pra sair do ensaio dela e disse: “Mas já? Não vai, não! Por que já vai? Fica aí!”. Tem coisa melhor?

- É que eu tenho um compromisso...

- Ah, entendi... – e ela riu, imaginando que compromisso seria aquele.

- Não, não. Hoje eu vou ver uns shows. Esse compromisso que você está pensando foi ontem.

Fui embora feliz de ter dado um pulo lá. Se ela tivesse insistido um pouco mais, acho que eu ficava. Resisto a tudo, menos a um sorriso.


***


Saí de casa às seis e quarenta. Peguei um ônibus. A idéia era ir até a rodoviária de Campo Grande e de lá pegar outro até a esquina da rua onde seriam os shows. Sem problemas.

No ônibus tinha dois caras de preto, um deles com a camisa da banda que ia fechar a noite. “Ótimo, eles devem saber o caminho”, eu pensei. Antes de chegar na tal rodoviária, passamos em frente à rua pela qual o segundo ônibus deveria ir. Quase fiz sinal pra descer, mas fiquei na minha. Só que eles dois desceram, eu resolvi ir atrás. O que parecia mais safo veio falar comigo:

- Ta indo pro show também? Sabe o caminho?


***


Um cara nos informou que tínhamos que ir até a rodoviária de Campo Grande e de lá, em outro ônibus, irmos até a esquina da rua em que seriam os shows. Ótimo.

Pegamos uma van até a rodoviária. No caminho, um deles resolveu pedir informações ao rapaz que cobrava as passagens. Ele fez cara de papel em branco, expressão de computador que trava. Eu fiquei atônito. Quando ele conseguiu responder, disse que a boa era pegar outra van por ali mesmo, exatamente onde estávamos. Os dois que entraram comigo seguiram a sugestão, mas eu resolvi ir até a rodoviária, sem sair do grande plano. Errar uma vez, tudo bem, mas duas é demais. Além disso, se eu tomasse dois ônibus em até duas horas, não pagaria a segunda passagem, graças a essa grande conquista do sistema de transporte público fluminense, que os paulistas já têm há uns dez anos.

Cheguei na rodoviária em um instante e, pra minha sorte mostrar que tinha mesmo virado, o ônibus já estava saindo. Um senhor muito solícito me indicou onde descer e lá estava eu, finalmente, depois de uma hora e quarenta, na esquina que procurava, a rua dos shows. Logo um cara vem me falar:

- Ta indo pra rave?

- Não. Show de rock.

- Mas não tem rave aqui hoje? Lá no número 1300?

- Hm. É pra lá que eu vou, mas não é rave, é show de rock.

- Te levo lá de mototáxi. 2 reais.

- Não, tá tranqüilo. Valeu.

- É longe, heim. Vai andar pra cacete. Bora, o que são dois reais?

Aceitei. No caminho, que em moto durou 3 minutos, percebi que, realmente, eu ia andar um bocado. Era uma estrada de terra, imunda e com ladeiras. Não tive como não pensar naqueles dois, será que tinham se acertado com a van?

Na entrada, cumprimentei uma amiga e fui lá ver o movimento. Legal, bastante gente. Aí aparece um dos caras, o que não parecia tão safo, falei com ele.

- Fala, tudo bem? Vieram numa boa?

- Sim, tranquilão. O cara da van deixou a gente aqui na porta, chegamos tem uns quinze minutos.


***


Saí de lá às 5:10 da manhã. Eu estava usando duas calças, duas camisas e uma jaqueta, mas o frio era de quebrar os ossos. Voltei com um ônibus só – um que passava ali pela esquina. Desci na porta de casa e dormi às 7:00. Tinha ensaio pela manhã, mas não me lembrava que horas. Coloquei o despertador para as dez horas. Às dez e meia acordo com uma mensagem no telefone, era do guitarrista: “Te encontro na esquina às 11:25. Sem atraso”. Ótimo, mais meia hora de sono. Pelo menos isso.


terça-feira, julho 05, 2011

Ela

Ela veio andando devagar, sentou, cruzou as pernas e ficou ali, me olhando. Lembro de tê-la visto algumas vezes antes, mas sempre de relance, ou só um vislumbre. Agora ela decidiu aparecer de repente e se sentar bem na minha frente, com aquele olhar que, se pudesse falar, diria “só não apareci antes porque você não estava preparado – não que agora você esteja, mas já passa da hora de tomar jeito”. E ainda finalizaria, quase um tapa, “então aprume-se, que você já é um homem feito”.

Mas que porra de mulher folgada, quem pensa que é pra falar assim comigo, ninguém fala assim... Ah, me rendo, tá certo, ela fala. Eu fico sem reação. E talvez ela ainda leia meus pensamentos, porque, veja bem, ela decidiu sorrir bem naquela hora. Ela estava ali sentada, sem fazer nada, e tinha o mundo inteiro de opções, ela poderia fazer qualquer coisa, qualquer uma! Mas decidiu sorrir, bem naquela hora. Eu estava tentando reparar na cor do cabelo, mas era difícil. Eram muitas cores. Não que fosse como um arco-íris, embora tivesse algum azul, verde ou rosa por ali (e nessas horas eu acho que ela usava uns piercings). Mas também era castanho, claro e escuro, algum ruivo vivo, louro (às vezes, só) e preto, aliás, principalmente preto.

Quando ela queria, estava de saias, ou então usava calças mesmo. As saias eram largas, de algum tecido leve desses que as mulheres usam quando está calor, e normalmente eram escuras. Ficavam bem bonitas quando parecia que ela andava por aí, porque aquele conjunto de saias, brisa, cores e caminhar era bem legal. E tava na cara que ela sabia disso. Mas quando usava calças, eram sempre daquelas mais justas, provavelmente porque combinavam com a camisa, vai saber. Eu gostava mesmo é quando ela vinha de vestidos, daqueles apaixonantes, sabe? Principalmente se fosse amarelo, quando ela tinha a pele mais morena, ou então azul. Não sei por que, azul sempre ficava bom. E ela sabia disso, sabia que eu adorava. Ela sabia de tudo e fazia bom uso do que sabia.

Naquele dia ela estava de vestido, claro. Azul, é óbvio. E cabelos pretos. Longos e lisos, daqueles que repousam gentilmente no peito e nos braços com alguns cachos nas pontas. Os olhos eram... ela estava meio longe, mas dava pra ver que eram castanhos. Linda como o sol. Não, não, era como a lua. Não que ela tivesse alguma coisa contra o dia, mas parecia ficar mais confortável com as estrelas em volta, e eram mesmo a companhia perfeita. Fora isso, tudo ao redor era prata. Sem dúvida nenhuma, era prata mesmo.