domingo, abril 20, 2014

Ela (II)

Ainda não chovia, mas o tempo fechado quase sempre já era suficiente para deixar Vítor angustiado. Ele preferia os dias em que conseguia enxergar o sol. Era o meio da tarde de um sábado em abril, estava indo para a casa de um amigo em Santa Tereza. Tomou o ônibus na Tijuca, onde tinha passado a semana, e o plano era descer na Presidente Vargas, caminhar até a Rua do Riachuelo e subir até Santa. Era uma boa caminhada, mas ele não sabia ir de outra forma. Além disso, de uns tempos pra cá ele passou a valorizar esses momentos – podia pensar na vida enquanto observava o comportamento das pessoas, todas com peculiaridades tão comuns, preciosas em sua banalidade.  Os fones de ouvido ajudavam com a trilha sonora do espetáculo cotidiano. O Centro é rico nisso.

Havia diversas esquinas que poderiam levar até a Riachuelo, mas o ônibus parou naquela. Talvez parasse sempre, talvez tenha parado especificamente ali apenas naquele dia. De qualquer forma, era uma esquina que Vítor conhecia. Havia algumas semanas que Alice e ele se desentenderam, e ela morava em um prédio mais à frente naquela rua. Ele pensou, por um momento, em dar a volta pelo quarteirão para não passar por ali, mas parecia um exagero. O ônibus parou ali e era um caminho conveniente.

A rua continuava a mesma. Não era bonita – pelo contrário, merecia mais cuidado da vizinhança. Era comum o lixo pelo chão e cheiro ruim. Paredes cinzentas, piso irregular. As pessoas não pareciam se preocupar com isso, já tinham preocupações demais. Enquanto tivessem outras prioridades, enquanto os dias parecessem um fardo, não é provável que o calçamento da rua fosse mudar. Havia pouca gente nas janelas, não havia muito o que ver em um sábado nublado.

Vítor e Alice haviam voltado a se encontrar depois de um bloco no domingo anterior ao carnaval (no Rio de Janeiro, o carnaval começa algumas semanas antes e termina só no domingo seguinte à quarta-feira de cinzas). Apesar disso, não parecia apenas uma história de carnaval. Vítor gostava de Alice desde que a viu, já havia alguns anos, sem nenhum motivo que ele soubesse explicar. “Gosto de você assim de graça”, ele chegou a dizer, sem muita poesia. E também que via em seus olhos certa luz, além de outras coisas mais (ridículas como, ele lera, eram todas as frases de amor), que guarda na lembrança. Alice segurou-lhe o rosto com as mãos e disse, já nas primeiras horas de segunda, “Dessa vez eu estou totalmente com você”.

Não foi à toa que ficaram tão encantados com aquele domingo de verão.

Mas agora era sábado de outono. Enquanto caminhava, ele imaginava se ela estaria em casa, ou por aí, ou a coincidência que seria se a encontrasse saindo. Pensou (não podia esconder de si mesmo) que gostaria de estar indo vê-la, não apenas de passagem pela rua. Lembrou de como as coisas haviam mudado tão rápido quanto aconteceram. Na realidade, entre as muitas horas daquele dia, ocorreu que ela já havia saído pouco antes de casa e caminhava mais à frente com um amigo, no mesmo sentido. O cabelo, que ela usava curto e vermelho, tinha pintado de preto e estava deixando crescer. Vestia calça e camisa pretas. Vítor sabia que deveria cumprimentá-la normalmente e seguir. Contudo, percebeu que estava em uma daquelas situações para as quais nem sempre se sabe a reação até que ocorra. Seu orgulho costumeiro de manter-se sempre tranquilo vacilava. Não era surpresa que ficasse melancólico, mas ficou também irritado – apesar da perplexidade de tal confusão de sentimentos, ambos jorraram espontaneamente num instante, da mesma origem incerta de todas as sensações. De fato, se algo ele pode dizer a seu favor, é que foi espontâneo. Ainda que não se orgulhe da sua reação, sabe que agiu sem qualquer fingimento.

Não tirou o fone dos ouvidos, a música era catártica, quase adequada ao momento. Nisso foi também espontâneo, embora soubesse antipático. É o que ocorre quando se sente com as entranhas, sacrifica-se a ternura em lugar do instinto − e o instinto mora, ao mesmo tempo, com o afeto e o feroz. Passou pelos dois, viu o espanto em Alice (o mesmo que ele próprio sentira), acenou e seguiu.

Vítor afastou-se rápido, tinha por hábito caminhar com passos longos. Atravessou para o outro lado da rua. Não guardava rancor, mas não conseguia fingir que nada tinha acontecido. De repente, não pensava no que passou, mas no que certamente aconteceria se seguisse o rumo até Santa Tereza. Carregaria a lembrança constrangedora de quando passou por ela e não foi capaz de conversar como se conversa com qualquer pessoa. Muito embora não fosse qualquer pessoa, era isso o que deveria fazer – sobretudo, era o que ele próprio esperava de si. Espantado e arrependido da fúria repentina, diminuiu o passo até o semáforo ficar verde e parou mais tempo do que o necessário para atravessar. Logo os dois o alcançavam.

Tirou os fones de ouvido. Não tentou dissimular um sorriso, mas se aproximou com a sinceridade de quem quer cumprimentar alguém que encontra de surpresa. “Muito prazer”. Conhecia o amigo de Alice por fotos. Sempre quis conhecê-lo, mas não naquelas circunstâncias.

– Oi, tudo bem com você?, perguntou.
– Tudo. Tá perdido por aqui?
– Vou à casa de um amigo em Santa Tereza.
– Vai caminhar bastante, heim? – talvez houvesse algo sarcástico na pergunta. O caminho não era longo, Vítor não ia caminhar mais tanto assim. Alice sabia, ela morava ali.
– Ficou bonito o cabelo.
– Obrigada.
– Tá tudo bem contigo? – repetiu a pergunta. Ele não queria se despedir. Queria que fosse tudo diferente.

Vítor caminhou até Santa Tereza. Um bairro antigo, construído no alto de morros quando a cidade ainda era jovem. Ele subiu. Foi ali que nasceu. Lá do alto, via tudo. A cidade inteira ao redor, a baía ao fundo, as ladeiras, curvas, os carros, as pessoas sem rumo. Ouvia suas vozes desencontradas, seus pensamentos confusos. Viu Alice lá embaixo, distante. Usava um vestido azul, os cabelos pretos longos caíam pelos ombros, com cachos nas pontas. Era bonita como a lua cheia. Então ela mudou. Suas cores eram muitas, sempre mudando. Vestia-se de muitas formas. Não tinha mais nome, não tinha mais rosto. Ela sumiu.