Ela (II)
Ainda não chovia, mas o
tempo fechado quase sempre já era suficiente para deixar Vítor angustiado. Ele
preferia os dias em que conseguia enxergar o sol. Era o meio da tarde de um
sábado em abril, estava indo para a casa de um amigo em Santa Tereza. Tomou o
ônibus na Tijuca, onde tinha passado a semana, e o plano era descer na
Presidente Vargas, caminhar até a Rua do Riachuelo e subir até Santa. Era uma boa
caminhada, mas ele não sabia ir de outra forma. Além disso, de uns tempos pra
cá ele passou a valorizar esses momentos – podia pensar na vida enquanto
observava o comportamento das pessoas, todas com peculiaridades tão comuns,
preciosas em sua banalidade. Os fones de
ouvido ajudavam com a trilha sonora do espetáculo cotidiano. O Centro é rico
nisso.
Havia diversas esquinas
que poderiam levar até a Riachuelo, mas o ônibus parou naquela. Talvez parasse
sempre, talvez tenha parado especificamente ali apenas naquele dia. De qualquer
forma, era uma esquina que Vítor conhecia. Havia algumas semanas que Alice e
ele se desentenderam, e ela morava em um prédio mais à frente naquela rua. Ele
pensou, por um momento, em dar a volta pelo quarteirão para não passar por ali,
mas parecia um exagero. O ônibus parou ali e era um caminho conveniente.
A rua continuava a
mesma. Não era bonita – pelo contrário, merecia mais cuidado da vizinhança. Era
comum o lixo pelo chão e cheiro ruim. Paredes cinzentas, piso irregular. As
pessoas não pareciam se preocupar com isso, já tinham preocupações demais. Enquanto
tivessem outras prioridades, enquanto os dias parecessem um fardo, não é
provável que o calçamento da rua fosse mudar. Havia pouca gente nas janelas,
não havia muito o que ver em um sábado nublado.
Vítor e Alice haviam
voltado a se encontrar depois de um bloco no domingo anterior ao carnaval (no Rio
de Janeiro, o carnaval começa algumas semanas antes e termina só no domingo
seguinte à quarta-feira de cinzas). Apesar disso, não parecia apenas uma
história de carnaval. Vítor gostava de Alice desde que a viu, já havia alguns
anos, sem nenhum motivo que ele soubesse explicar. “Gosto de você assim de
graça”, ele chegou a dizer, sem muita poesia. E também que via em seus olhos
certa luz, além de outras coisas mais (ridículas como, ele lera, eram todas as frases de amor), que guarda na lembrança. Alice segurou-lhe o rosto com as
mãos e disse, já nas primeiras horas de segunda, “Dessa vez eu estou totalmente
com você”.
Não foi à toa que ficaram
tão encantados com aquele domingo de verão.
Mas agora era sábado de
outono. Enquanto caminhava, ele imaginava se ela estaria em casa, ou por aí, ou
a coincidência que seria se a encontrasse saindo. Pensou (não podia esconder de
si mesmo) que gostaria de estar indo vê-la, não apenas de passagem pela rua. Lembrou
de como as coisas haviam mudado tão rápido quanto aconteceram. Na realidade, entre as
muitas horas daquele dia, ocorreu que ela já havia saído pouco antes de casa e
caminhava mais à frente com um amigo, no mesmo sentido. O cabelo, que ela usava
curto e vermelho, tinha pintado de preto e estava deixando crescer. Vestia
calça e camisa pretas. Vítor sabia que deveria cumprimentá-la normalmente e
seguir. Contudo, percebeu que estava em uma daquelas situações para as quais
nem sempre se sabe a reação até que ocorra. Seu orgulho costumeiro de manter-se
sempre tranquilo vacilava. Não era surpresa que ficasse melancólico, mas ficou
também irritado – apesar da perplexidade de tal confusão de sentimentos, ambos jorraram
espontaneamente num instante, da mesma origem incerta de todas as sensações. De
fato, se algo ele pode dizer a seu favor, é que foi espontâneo. Ainda que não
se orgulhe da sua reação, sabe que agiu sem qualquer fingimento.
Não tirou o fone dos
ouvidos, a música era catártica, quase adequada ao momento. Nisso foi também
espontâneo, embora soubesse antipático. É o que ocorre quando se sente com as
entranhas, sacrifica-se a ternura em lugar do instinto − e o instinto mora, ao
mesmo tempo, com o afeto e o feroz. Passou pelos dois, viu o espanto em Alice
(o mesmo que ele próprio sentira), acenou e seguiu.
Vítor afastou-se rápido,
tinha por hábito caminhar com passos longos. Atravessou para o outro lado da
rua. Não guardava rancor, mas não conseguia fingir que nada tinha acontecido. De
repente, não pensava no que passou, mas no que certamente aconteceria se
seguisse o rumo até Santa Tereza. Carregaria a lembrança constrangedora de
quando passou por ela e não foi capaz de conversar como se conversa com
qualquer pessoa. Muito embora não fosse qualquer pessoa, era isso o que deveria
fazer – sobretudo, era o que ele próprio esperava de si. Espantado e
arrependido da fúria repentina, diminuiu o passo até o semáforo ficar verde e parou
mais tempo do que o necessário para atravessar. Logo os dois o alcançavam.
Tirou os fones de
ouvido. Não tentou dissimular um sorriso, mas se aproximou com a sinceridade de
quem quer cumprimentar alguém que encontra de surpresa. “Muito prazer”. Conhecia
o amigo de Alice por fotos. Sempre quis conhecê-lo, mas não naquelas circunstâncias.
– Oi, tudo bem com
você?, perguntou.
– Tudo. Tá perdido por
aqui?
– Vou à casa de um
amigo em Santa Tereza.
– Vai caminhar
bastante, heim? – talvez houvesse algo sarcástico na pergunta. O caminho não
era longo, Vítor não ia caminhar mais tanto assim. Alice sabia, ela morava ali.
– Ficou bonito o
cabelo.
– Obrigada.
– Tá tudo bem contigo? –
repetiu a pergunta. Ele não queria se despedir. Queria que fosse tudo
diferente.
Vítor caminhou até
Santa Tereza. Um bairro antigo, construído no alto de morros quando a cidade
ainda era jovem. Ele subiu. Foi ali que nasceu. Lá do alto, via tudo. A cidade
inteira ao redor, a baía ao fundo, as ladeiras, curvas, os carros, as pessoas
sem rumo. Ouvia suas vozes desencontradas, seus pensamentos confusos. Viu Alice
lá embaixo, distante. Usava um vestido azul, os cabelos pretos longos caíam
pelos ombros, com cachos nas pontas. Era bonita como a lua cheia. Então ela
mudou. Suas cores eram muitas, sempre mudando. Vestia-se de muitas formas. Não
tinha mais nome, não tinha mais rosto. Ela sumiu.
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